A Desconsideração da Personalidade Jurídica
- Zanetti & Aragão
- 7 de abr. de 2020
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A desconsideração tem origem nos Estados Unidos e na Inglaterra, no século XIX, quando o julgador olhou através da personalidade jurídica, observando o sócio e considerando-o para efeitos de obrigações patrimoniais, decorrentes de seu trabalho na pessoa jurídica.
Foi doutrinariamente instituído no século XX por Maurice Wormser nos Estados Unidos, Pierro Verrucoli na Itália e Rolf Serick na Alemanha. No Direito Anglo-americano é chamada de disregard doctrine; no Direito Italiano, teoria da superação; no Direito Alemão, teoria de penetração.
Fabio Ulhoa destaca que, na Inglaterra, quando ocorreu o Companies Act em 1929, previa em sua seção 279 que se fosse constatada a prática de fraude contra credores ou qualquer outro tipo de fraude, a Corte, a pedido do liquidante, poderia declarar a pessoa que participou consciente da operação fraudulenta direta e responsável pela obrigação.[1]
Na prática, a desconsideração da personalidade jurídica na Inglaterra é muito lembrada por diversos doutrinadores e professores no caso Salomon & Co., uma vez que este episódio chegou à última instância da House of Lords[2].
Salomon era um empresário de pequeno porte que possuía muitos credores e, com a Companies Act de 1844, Sr. Salomon decidiu registrar em sua empresa 7 sócios, que era o mínimo legal instituído em lei. Os sócios foram seus cinco filhos e sua esposa, totalizando o mínimo legal para registro da pessoa jurídica.
Logo após a abertura e registro, uma forte crise assolou a Salomon & Co., entrando em liquidação. Quando da liquidação, os credores tiveram ciência de que a empresa são teria caixa e recursos suficientes para quitar todas as dívidas. O problema era que o Sr. Salomon era o credor primário, ou seja, se ele não recebesse, os demais não receberiam. O caso foi levado à última instância e, a partir desse momento, a discussão da desconsideração da personalidade jurídica foi levada aos demais julgados.
Na Alemanha, Rolf Serick foi o percursor para a introdução da desconsideração da personalidade jurídica no sistema. Defendia a tese “Forma jurídica e realidade das pessoas jurídicas – contribuição de direito comparado à questão da penetração destinada a atingir pessoas ou objetos situados atrás da pessoa jurídica.
Para Rolf Serick, a penetração da pessoa jurídica permitia que os bens dos sócios fossem utilizados no pagamento das dívidas, bem como que a pessoa natural respondesse fora do âmbito da pessoa jurídica.
1.2 CONCEITO
Meio de repressão à frustração da atividade executiva, este é o conceito adotado por Gilberto Gomes Bruschi (2016, p.138). Segundo ele, o conceito da desconsideração é caracterizado pela decretação da ineficácia relativa do limite patrimonial da pessoa jurídica, com que permita que sejam atingidos os bens dos sócios, ex-sócios, acionistas, ex-acionistas, administradores, ex-administradores e sociedades do mesmo grupo econômico; ou, ainda, que sejam atingidos os bens da pessoa jurídica por obrigações contraídas por eles, no caso da desconsideração inversa da personalidade jurídica.[3]
Quando analisamos o caso concreto, o conceito da desconsideração origina-se de uma responsabilidade executiva secundária, ou seja, em que a obrigação foi assumida pelos sócios, uma vez que contraíram sociedade e formalizaram o registro da pessoa jurídica.
A validade da sociedade não é questionada na desconsideração da personalidade jurídica, ela continua existindo. O afastamento é temporário e destinado a um evento, excepcional e episodicamente para que a responsabilidade pelo pagamento ou cumprimento de certa obrigação seja transferida aos sócios[4].
Preceitua o artigo 790 do Código de Processo Civil que ficam sujeitos à execução os bens do responsável, nos casos de desconsideração da personalidade jurídica.[5]
A desconsideração da personalidade jurídica é a teoria criada para afastar momentaneamente esta autonomia patrimonial que as pessoas jurídicas possuem, como forma de realizar a satisfação das obrigações contratadas.
1.3 NO BRASIL
Primeiramente, a jurisprudência adotou o instituto por volta da metade do século XX, quando ainda não era previsto em lei o instituto.
Logo após, surgiram os trabalhos doutrinários pioneiros a respeito da desconsideração da personalidade jurídica, como os de Rubens Requião, Fábio Konder Comparato, Jose Lamartine Corrêa de Oliveira e Marçal Justen Filho.

A Lei 8.078/1990 foi a primeira a afirmar e legislar sobre o instituto da desconsideração, sendo que em seu artigo 28, trata:
Artigo 28. “O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, e detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.”
A lei consumerista refere-se ao abuso de direito, ou seja, vislumbra atacar os atos que façam da empresa insolvente e, dos sócios, fraudulentos. Assim, Guilherme Fernandes Neto destaca que a necessidade de fraude para desconsiderar a personalidade jurídica não foi uma inovação trazida pela legislação consumerista, sendo ela já realizada em casos em que se verificava o uso abusivo da entidade, considerando tal fato uma “punição da disfunção”.[6]
Em análise do parágrafo 5º do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor, Claudia Lima Marques objetiva que a previsão ampla de promover a desconsideração sempre que a personalidade jurídica for obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos sofridos pelo consumidor deixa bem claro o viés protetivo adotado pelo código[7]:
§ 5º: “Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados ao consumidor”.
Este instituto adota a teoria menor da desconsideração, comparando e abrangendo alguns casos previstos na jurisprudência brasileira, ou seja, exige poucos requisitos para a efetividade da desconsideração. Claudia Lima também é defensora de que este instituto de desconsideração se estende a situações mais raras e complexas, abrangendo geralmente, em que a PJ não disponha de patrimônio algum.
O princípio da confiança, compilado pelo artigo 6º do CDC, garante ao consumidor o direito da reparação dos danos sofridos, ou seja, não devendo somente garantir a qualidade do produto, mas sim a reparação decorrentes da relação de consumo, o que caracteriza o uso da desconsideração em casos de insolvência, por exemplo.
O artigo 34 da Lei de Defesa da Ordem Econômica assim trás ao ordenamento jurídico:
Art. 34: “A personalidade jurídica responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social.
Parágrafo único: A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração”.
Na análise mais recente da questão, podemos nos apoiar do instituto da desconsideração da personalidade jurídica no artigo 14 da Lei Anticorrupcao[8]:
Art. 14: A personalidade jurídica poderá ser desconsiderada sempre que utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei ou para provocar confusão patrimonial, sendo estendidos todos os efeitos das sanções à pessoa jurídica aos seus administradores e sócios com poderes de administração, observados o contraditório e a ampla defesa.”
A teoria da desconsideração permite ao juiz tornar ineficaz algum limite existente entre patrimônios da sociedade e os do sócio, quando tiver ocorrido abuso de personalidade jurídica com intuito e satisfação de determinada obrigação, como em casos de desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, como preceitua Rodolfo da Costa Manso Real (2016, p. 140).
A desconsideração foi positivada no ordenamento jurídico brasileiro em 2002, com a introdução acerca da disregard doctrine. O Conselho da Justiça Federal, em enunciado nº 51, deixou claro e determinou que a implementação da desconsideração no Código Civil de 2002 não iria modificar o que já havia sido tratado em legislações micro, e nem as jurisprudências sobre o tema, de modo que apenas afirmou o que já havia estava em andamento, senão vejamos:
“Enunciado 51 do CJF – Art. 50: a teoria da desconsideração da personalidade jurídica – disregard doctrine – fica positivada no novo Códgo Civil, mantidos os parâmetros existentes nos microssistemas legais e na construção jurídica sobre o tema.”
Quando da positivação, houve o questionamento por parte dos juristas no que tange a quem sairia mais vitorioso e vantajoso, tendo em vista que, na legislação consumerista, o consumidor é muito mais poderoso que a pessoa jurídica. Já na área do Direito Civil, existe a igualdade, as forças de interesse são medidas da mesma forma.
Essa modificação levou mais segurança jurídica aos que teriam seus direitos salvos pela desconsideração, assim como limitaria tanto quanto bastassem os bens de sócios em sua igualdade.
Em sua origem, o artigo 49 do Anteprojeto de Lei do Código Civil atual previa a dissolução da pessoa jurídica, o que foi criticado por muitos visto que era inaceitável que o vício e fraude cometidos pelos sócios em nome da pessoa jurídica, resolvessem na dissolução completa da sociedade, mostrando verdadeiro radicalismo.
Quanto a legislação em vigor, temos que:
Art. 50: “Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.”[9]
Analisando o artigo, o abuso é o quesito essencial para desconsideração. Tem também como abuso quando confundido o patrimônio do sócio com o da pessoa jurídica, quando um usa o outro para pagar contas, realizar transferências, pagamentos pessoais e outros. Há também o entendimento do desvio de finalidade, previsto no Código.
Exige-se a provocação da parte para que o instituto seja aplicado, ou seja, o juiz não pode por livre convicção, invocar o instituto, ainda que seja o melhor para o momento. A diferença alarmante entre a legislação consumerista e o Código Civil é a questão da balança de forças entre as partes, assim como a teoria maior e a menor.
Muitos casos de desconsideração são previstos no ordenamento jurídico brasileiro, com requisitos dos mais variados previstos para permitir a desconsideração e garantir ao credor receber sua quantia.
[1] COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Direito de Empresa. 22ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010
[2] Corte Britânica. Última instância do judiciário britânico.
[3] BRUSCHI, Gilberto Gomes; NOLASCO, Rita Dias; AMADEO, Rodolfo da Costa Manso Real. Fraudes Patrimoniais e a desconsideração da personalidade jurídica no Código de Processo Civil de 2015. 1ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.
[4] Quando tratado o termo “sócio”, este trabalho refere-se aos citados em fls. 16, 3.2 (sócios, ex-sócios, acionistas, ex-acionistas, administradores, ex-administradores e sociedades do mesmo grupo econômico
[5] BRASIL, Código de Processo Civil (2015). Lei 13.105. Disponível em, <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>;
[6] FERNANDES, Neto Guilherme. O abuso do direito no Código de Defesa do Consumidor: cláusulas, práticas e publicidade abusivas. Brasília: Brasília Jurídica, 1999.
[7] MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999
[9] BRASIL, Código Civil de 2002. Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Congresso Nacional.
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